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“O que salva são medidas não farmacológicas”: confira entrevista na íntegra com Odorico Monteiro

Médico Odorico Monteiro fala sobre enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Ceará

21.05.20 - 07H45 Por Amanda Araújo
Odorico Monteiro sorrindo; medidas não farmacológicas são o que salvam na pandemia de Covid-19, segundo o médico
Odorico Monteiro é professor de Medicina da UFC, coordenador do mestrado em Saúde da Família da UFC Sobral e pesquisador da Fiocruz (Foto: Fabio Lima/O POVO)

A produção de insumos e investimentos em ciência e tecnologia é uma questão de soberania nacional. É o que aponta o médico Odorico Monteiro, em entrevista por telefone ao caderno Agir#4. “Produzimos avião, produzimos carros, mas o mundo – e o nosso País – não estava preparado para a crise
de Covid-19”.

Para ultrapassar esta pandemia, no entanto, cada um pode fazer a diferença. “O grande desafio, é uma esperança, mas se você tiver que colocar uma frase para mim, é: ainda hoje, as medidas mais importantes para resolver a pandemia são medidas não farmacológicas”, enfatiza Odorico.

Confira a entrevista na íntegra com o dr. Odorico, que defende medidas não farmacológicas:

AGIR –  Como uma vacina contra um vírus funciona?

Odorico Monteiro – Ela pode ter o vírus vivo, atenuado que a gente chama, ou pode ter o vírus inativo. No caso do coronavírus, em abril, havia 75 projetos no mundo, em maio já estamos com 100 projetos, dos mais diferentes tipos. Hoje, há, pelo menos, 11 estudos de vacina que estão em fase de ensaio clínico. Normalmente, qual o percurso de uma vacina: primeira fase, testes com animais, vai ver se o animal produz anticorpos para a doença; depois, teste em pessoas sadias, para saber se tem toxicidade, se tem reações inflamatórias, se a vacina circula no sangue. Na fase três, você vai dar escala em grande quantidade de pessoas, geralmente, também faz um estudo duplo-cego. Pode fazer, também, dependendo da situação, placebo, o grupo que recebeu placebo e o grupo que recebeu a vacina, e vai estudar os anticorpos. Pode ter uma fase quatro, que você já registrou a vacina, conseguiu produzir em larga escala, mas quando vai aplicar em uma grande população, quando coloca a escala de milhão, pode ter reações inflamatórias.  Quando a gente diz que estão em ensaios clínicos, já terminou a fase um e a fase dois, muitas vezes estão na fase três. A vacina da gripe é vírus atenuado, no caso do coronavírus, já surgiram mais dois tipos, que são subunidades baseadas em proteína. E estão construindo uma tese que seria vetor viral, são muitas pesquisas. O objetivo é partir de uma vacina que induz o organismo a produzir anticorpos sem contaminar as pessoas.

AGIR – Uma vacina contra o coronavírus, na melhor das hipóteses, sairia em setembro, segundo pesquisas. Mas precisamos levar em conta ainda a demora para chegar ao público, principalmente o mais vulnerável. Qual seria uma estimativa viável de cura da Covid-19?

Odorico – Ainda hoje nós não temos uma vacina para Aids, e já foram investidos bilhões de reais, não é porque a ciência não tenha pesquisado. Ainda não se conseguiu construir anticorpos para o vírus da Aids. A gente conquistou coquetéis de medicamentos que reduzem a carga viral, e a quantidade de vírus não é suficiente para produzir a doença Aids. Tem muita gente soropositivo, vive com o vírus dentro dela, toma os coquetéis, mas não chega a produzir a doença. Uma vacina não é uma coisa que sai quando a gente quiser, tem laboratórios que passaram 20 anos estudando a dengue e ainda não têm uma vacina efetiva para dengue. Para a dengue você tem que conseguir que uma vacina seja eficiente para os quatro tipos diferentes da dengue. Qual o problema estamos tendo no Brasil, ao mesmo tempo que está tendo a pandemia do coronavírus, está tendo epidemia de dengue e das outras gripes virais. Eu acho que, dificilmente, a gente consegue uma vacina [para Covid-19] com menos de um ano, que seja eficiente e eficaz, para você adotar no mundo todo. Depois, qual vai ser o preço dessa vacina? Qual a escala de produção? O grande desafio, é uma esperança, mas se você tiver que colocar uma frase para mim, é: ainda hoje, as medidas mais importantes para resolver a pandemia são medidas não farmacológicas, o que salva nesta pandemia são medidas não farmacológicas.

AGIR – Existem pessoas defendendo que o melhor seria espalhar o vírus rapidamente para criar mutações menos perigosas do vírus, sem lockdown. Isso não seria possível?

Odorico – Isso não existe, essa teoria de imunidade de rebanho é uma teoria genocida, é uma genocídio. É uma teoria eugênica, fascista! Porque vão morrer os pobres, vão morrer todos, mas quem mais vai sofrer com isso é a população vulnerável, porque o vírus não é democrático. Apesar de contaminar todos, quem mais está morrendo em Fortaleza, no Brasil, quem mais vai se contaminar no Brasil é a população de menor IDH. Porque é a população que mora aglutinada em pequenas casas, são as que têm menos assistência em tudo. Não tem um país que adotou imunidade de rebanho, não tem um cientista que defende imunidade de rebanho, essa é a pior informação! Na minha opinião, tem uma única tese que é a tese de eugenia, ou seja, vamos matar os negros, vamos matar os pobres, a população mais pobre, seleção natural, quem viver são os fortes? Isso não se sustenta em pleno séculos XXI, não tem como defender imunidade de rebanho, nenhum país do mundo defende isso. Você dizer que 70% da população vão pegar e quem morrer “e daí?” não é uma postura. Por que o Brasil gera dúvida na população em relação à importância do lockdown, do isolamento social? Porque o presidente, que podia estar coordenando o processo nacional de articulação com os governadores, com os prefeitos, [não está]. Porque o SUS é interfederativo, só funciona se for articulada a união dos estados e dos municípios, o discurso produzido pelo presidente está matando pessoas.

AGIR – Parte da população cearense não se conscientiza da necessidade de ficar em casa e do lockdown. O que seria necessário fazer para conscientizar as pessoas?

Odorico – Eu acho que o governador tem feito um trabalho hercúleo, está fazendo grandes investimentos do pontos de vista da assistência da população. Mas nós precisamos falar para as pessoas, precisamos comunicar, colocar toda nossa energia para conscientizar a população de que não adianta neste momento construir qualquer alternativa que não seja isolamento social, porque ele vai salvar as pessoas. Eu tenho usado aquela figura, uma sala, com um tonel aberto e alguém enxugando o chão. Não adianta querer enxugar o chão enquanto a torneira estiver aberta, por mais que eu possa colocar leito, por mais que eu crie hospital de campanha, se a gente não levar a sério a questão do lockwodn, trancamento da rua, a gente não consegue resolver o problema. Para fazer o lockwdon, a falta que o governo federal está fazendo de não assumir seu papel na coordenação envolve articulação das forças de segurança, tem que colocar a segurança na rua, tem que garantir acesso à renda mínima. É um absurdo a forma como o recurso está chegando, fazendo com que as pessoas se amontoem; nós precisamos construir medidas sociais para viabilizar o lockdown. Infelizmente, a ausência do governo federal na coordenação da articulação nacional pode levar o Brasil a ter a pior experiência do mundo no enfrentamento do coronavírus.

AGIR – As UTIs estão lotadas, e o coronavírus se expande para a população mais pobre.  Quais modelos seriam adequados para nosso País e Estado, tendo em vista nossa população numerosa, comparável talvez apenas aos EUA?

Odorico – Eu diria que a experiência mais bem-sucedida é a dos asiáticos, seja Coreia, Singapura, Japão. Eu acho que a experiência europeia, eles perderam tempo, mas quando viram que a coisa era séria, reagiram; na Inglaterra, o próprio primeiro-ministro chegou a desconfiar da pandemia, ele próprio foi contaminado. Acho que a experiência norte-americana é muito desastrosa, e a nossa pode ser pior que a americana. 

AGIR – Escutamos muito falar em isolamento e expectativa de uma vacina. No entanto, países que tiveram um alto índice de testes conseguiram conter a curva de crescimento de forma eficaz e reduzir o tempo de isolamento. Por que temos tanta subnotificações e como seria possível, no Ceará, aumentar o número de testes?

Odorico – Não tem gente em canto nenhum fazendo teste, nós não temos testes, é uma loucura. O Brasil, enquanto todo mundo tem teste, nós não temos reagentes para os testes, não temos swab, aquele cotonetezinho, nós não temos. Não estamos testando porque o presidente da República botou na cabeça que a única coisa que nós temos que fazer é imunidade de rebanho, quase homicídio. Você vai matar os pobres porque a seleção natural vai resolver os problemas? Tem dois tipos de teste, RT-PCR, que extrai o vírus, molecular, e o imunológico, que vê se a pessoa já teve a doença e tem o anticorpo, e faltam os dois de confiança. 

AGIR – A Fiocruz desenvolve pesquisas relacionadas ao coronavírus. Em que fase estão?

Odorico – A Fiocruz tem atuado no enfrentamento da pandemia em várias frentes, uma frente importante é apoio ao Ministério da Saúde (MS) e o conjunto das políticas que o MS tem adotado, inclusive na orientação de medidas farmacológicas e não farmacológicas. Farmacológicas são medidas que envolvem terapias medicamentosas. A Fiocruz dá muito suporte ao MS na construção de modelos, modelos de predições, matemáticos, modelos estatísticos de comportamento da pandemia no Brasil e no mundo. A Fiocruz se relaciona com todos os grandes centros de pesquisas do mundo, tem os maiores especialistas em doenças virais, inclusive o hospital de referência do enfrentamento da epidemia do ebola foi o hospital da Fiocruz no Rio de Janeiro. Nós temos 120 anos, nascemos em 1900, no enfrentamento da febre amarela, da varíola, e depois da gripe espanhola. Estamos participando de muitos ensaios clínicos, de testes de medicamentos, também estamos testando a eficácia e eficiência de vários medicamentos em associação com várias universidade e vários hospitais. Estamos trabalhando muito fortemente na produção dos testes imunológicos e também testando a qualidade dos testes. Estamos construindo hospital de campanha na Fiocruz do Rio, aqui, no Ceará, levamos todas as nossas máquinas de produção de testes, todos os nossos pesquisadores nessa área de virologia, nossos alunos de doutorado, para o Hemoce e o Lacen.

AGIR – Quais as chances de vivenciarmos uma segunda fase da pandemia de Covid-19?

Odorico – Estamos aprendendo com esse vírus, tem que ter humildade. Esse vírus é um grande professor, quem mais sofre com ele é quem nega a ciência, esse é o maior problema que a gente tem. O que estou preocupado, tem três grandes blocos; um blocos de uns 100 países que a epidemia continua em larga expansão, três países estão liderando, o Brasil, a Rússia e a Índia. Tem um grupo de países que a epidemia está totalmente sob controle, os asiáticos e os europeus, [os casos] estão em declínio. E tem um grupo aí de situação mista, que é o caso dos EUA, que está fazendo, mas ainda há grande quantidade de casos o tempo todo. Nos EUA, já morreram quase 80 mil, duas vezes a quantidade de americanos que morreram em 15 anos de guerra do Vietnã, é um desastre também. Brasil e EUA são as piores experiências do mundo. Como pode voltar novamente? O que pode acontecer é o que a gente chama de efeito sanfona, como a gente não está fazendo o dever de casa bem feito de enfrentar a pandemia, com lockdown verdadeiramente, a gente pode ficar entrando e saindo. Sai, tem uma pressão grande, abre, daqui a pouco tem muita gente morrendo em casa, nos hospitais, não tem leito de UTI. O que mais os preocupa é levar à total exaustão do sistema de saúde, hoje estamos com 100% dos leitos público e privados do Ceará ocupados. Quando você chega a 98%, você leva à total exaustão. Os casos novos, as pessoas começam a morrer, nas UPAs, nos postos de saúde em casa. Porque tem as outras doenças, além do coronavírus, tem alguém com AVC, alguém infartando, apendicite, com abdômen agudo, com câncer, doença crônica. Uma intercorrência que precisa de hospital, mas não tem porque o hospital está todo em função do coronavírus. Esse colapso total entra e sai, acha que daqui a 20 dias abre, aumenta o contágio, aí volta. Nós temos que falar mais com a população sobre a importância do isolamento social, sobre as pessoas se conscientizarem da gravidade dessa doença, da gravidade do contágio do vírus. É diferente de outros vírus que o contágio é menor, por exemplo, o vírus da Aids. O nosso apelo é que a população entenda que mais importante do que leitos de UTIs, mais importante do que hospital de campanha, de novos hospitais, é o isolamento social. 

AGIR –  O que a pandemia nos ensina sobre investimento público em educação e pesquisa?

Odorico – É que o investimento em ciência, em tecnologia, no complexo produtivo da saúde no Brasil, na produção de química fina, na produção de medicamentos, de equipamentos de proteção individual, de insumos em tecnologia, inclusive, inteligência artificial aplicada à saúde, é um problema de soberania nacional. O Brasil está totalmente com a soberania prejudicada, porque para o Ceará ter macas, aventais, luvas para enfrentamento, isso tem que vir de um avião da China. É incompatível um país que produz avião, que produz petróleo, que tem autossuficiência em petróleo, que tem a maior potência do mundo na produção de carne, de soja, de grãos, não conseguir produzir equipamentos de proteção individual. Isso é falta de prioridade estratégica do País, essa falta de prioridade estratégica em investimento é que deixa o País frágil, de joelho. Eu chamo falta de prioridade de investimento no que a gente chama de complexo econômico industrial da saúde. O mundo tem dois grandes complexos, um é o bélico, o segundo complexo econômico mais importante do mundo é o da saúde. O Brasil é total e dependente dessa produção. Eu confesso que toda vida que vejo gráfico da evolução da pandemia na Índia dá um frio na barriga. Primeiro, pelos indianos, um país com mais de um bilhão de habitantes, segundo porque 93% dos medicamentos produzidos no Brasil, a química fina que a gente chama, vêm da Índia. Se você tiver um grande lockdown na Índia é possível que afete a produção de medicamentos mais variados no Brasil. E eu quero fazer uma ressalva, o que o Brasil tem de diferente? Em função da Fiocruz e do Instituto Butantã, nós conseguimos, com esses dois institutos públicos, internalizar uma produção de vacinas. Vacina para sarampo, vacina para coqueluche, vacina para tuberculose, vacina para HPV, vacina para gripe já são produzidas o Brasil graças ao esforço da Fiocruz e do Butantã. Se o país priorizar a internalização, a autonomia e a soberania nacional no complexo econômico industrial econômico, a gente tem condição, basta ter prioridade.   

AGIR – Quais as heranças o senhor hoje avalia que esta pandemia vai deixar para o Ceará?

Odorico – Eu acho que uma das coisas mais importantes é seriedade, para nós é um legado importante, é a forma serena, a forma firme, competente, humana, dedicada,  como o governador Camilo Santana tem conduzido o enfrentamento dessa pandemia.Deixa um legado que, infelizmente, a ausência do governo federal tem atrapalhado muito o enfrentamento da pandemia. Pelo fato de o governador ter decretado isolamento e só uma semana depois, por medidas judiciais, o governo federal ter proibido os voos do Ceará, isso foi suficiente para trazer o impacto do aumento de contágio. Por que  Nova York foi epicentro da pandemia? Porque, em dezembro e janeiro, recebeu dois milhões de europeus no turismo. Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo são epicentro porque, pelos fato de só uma semana depois do isolamento terem suspendido os voos [internacionais], chegaram ao Ceará 40 voos da Europa e dos EUA. Ou seja, não tem como enfrentar uma pandemia sem articulação da União, dos estados e dos municípios.

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