Covid-19: resposta feminista à pandemia
Antropóloga Debora Diniz compartilha o que espera do mundo pós-pandemia e os valores necessários para isso
“Todos nós precisamos de cuidado”. Papel esse, na esmagadora maioria das vezes, desempenhado por mulheres. A distribuição do cuidado é desigual, e, em defesa de um pós-pandemia de Covid-19 no qual valores feministas façam parte do nosso vocabulário comum, a antropóloga Debora Diniz destaca a urgência de fortalecermos políticas e mecanismos de proteção a meninas e mulheres.
Professora de Direito da Universidade de Brasília (UNB), Debora pesquisa os impactos do vírus zika no Brasil e traça um paralelo com o momento atual que vivemos. “Até hoje, mulheres e crianças afetadas pelo zika estão por conta própria”, diz, em entrevista por WhatsApp ao caderno Agir#5.
O que se espera é que a pandemia de Covid-19, que agrava sobremaneira as desigualdades sociais, tenha um desfecho diferente para a população vulnerável, com proteção social, interdependência e cuidado coletivo. Porque “as desigualdade sociais nos afetam a todos”.
Acesse o caderno Agir #5: o pós-pandemia aqui
Confira a íntegra da entrevista sobre impactos da Covid-19:
AGIR – Em meio à crise econômica, cultural e biológica, o que podemos esperar do “novo normal”?
Debora Diniz – Começo estranhando a expressão “novo normal”. As aspas cabem tanto para “novo”, quanto para “normal”. O que vivíamos como normalidade, e a pandemia nos põe em perspectiva, eram desigualdades naturalizadas na sociedade brasileira.
Não há nada garantido para o que eu chamaria, em vez de “novo normal”, de vida social depois da pandemia de Covid-19. Tudo depende de como estamos respondendo às crises, seja como cidadãs, sociedade civil ou governos. Minha expectativa – e meu trabalho – é de que não haja uma nova naturalização de desigualdades. O que penso é o seguinte: as pessoas não são expostas à Covid-19 da mesma maneira. Os riscos – de saúde, sociais e econômicos – que enfrentamos são condicionado por vulnerabilidades anteriores, produzidas pelas desigualdades de gênero, raça, classe, deficiência.
Mas o desamparo nos une agora, à medida que testemunhamos a centralidade do trabalho de cuidado na vida social. Todos nós precisamos de cuidado e estamos aprendendo sobre os trabalhos essenciais à vida coletiva: dependemos de trabalhadoras da saúde, de professoras, de trabalhadoras domésticas, de cuidadoras de crianças e de idosos, de motoristas de transporte público, de trabalhadores da limpeza, de caixas e atendentes de supermercados e farmácias, de cozinheiras, de vendedores de rua, de entregadores de comida.
Assim, o que espero para o mundo pós-Covid-19 é um mundo em que os valores feministas façam parte do nosso vocabulário comum. O desamparo e a vulnerabilidade estão no centro dos debates políticos e econômicos atuais, e não haverá saída se não fortalecermos políticas e mecanismos de proteção. Para aqueles que sobreviverem a essa pandemia e a todo o sofrimento e perdas que ela está causando, minha esperança é que não possamos mais evitar falar sobre nossa interdependência. Precisamos falar sobre proteção social, cuidados básicos para trabalhadores de atividades essenciais – que em sua maioria são trabalhadores informais ou precarizados – distribuição justa de trabalho de cuidado, fortalecimento do acesso universal à saúde.
AGIR – A senhora teve que deixar o País em 2018 por causa de uma série de ameaças após defender a descriminalização do aborto. Como é viver a pandemia de Covid-19 longe do país de origem?
Debora – Saí do País com a convicção de que as ameaças não me calariam, e assim tem sido. Desde então, tenho escrito mais em jornais e passei a participar de debates sobre a vida política do País por meio de redes sociais, que eu nunca tive enquanto estava no Brasil. Hoje estou ativa no Twitter e no Instagram, e também por meio dessas plataformas eu acompanho e compartilho histórias sobre os impactos da pandemia sobre a vida das mulheres, especialmente. Na conta de Instagram @womenintimes (Mulheres em tempos de pandemia), que lançamos há poucos dias, contamos histórias reais de mulheres da América Latina e do Caribe sobrevivendo à pandemia. Já falamos de mulheres que são mães de crianças afetadas pelo zika e agora enfrentam também os riscos da Covid-19; falamos de mulheres que caminham por horas para conseguir atendimento em clínicas de saúde reprodutiva para acessar métodos contraceptivos, porque não querem engravidar em meio à crise; falamos de mulheres ajudando outras mulheres a buscar proteção longe de companheiros agressores enquanto a violência cresce em tempos de isolamento social. Vivo a angústia de não poder estar mais perto da minha família, da Universidade de Brasília e seus estudantes, mas tenho feito todo uso que as estratégias digitais me permitem para seguir ativa na defesa de direitos de meninas e mulheres.
AGIR – O que a senhora pode ensinar, a partir da sua experiência, sobre enfrentamento de ataques na internet? O que poderia dizer sobre isso para outras mulheres, que também sofrem violência por causa da aparência e de opiniões pessoais?
Debora – Os ataques que eu e muitas outras defensoras de direitos humanos e igualdade de gênero sofremos parte de uma comunidade de ódio que floresce na clandestinidade virtual e na política atual do País. Não podemos esquecer que vivemos em uma das regiões do mundo de maior risco para defensores de direitos humanos.
Essas comunidades de ódio são masculinas, de homens jovens ressentidos da história. São homens que desdenham das mulheres, pois as imaginam na casa ou como procriadoras; são homens que discriminam homens gays, pois não suportam masculinidades alternativas; são homens racistas que não querem ver pessoas negras em espaços de poder. São comunidades sem líder ou estrutura formal, ligadas por um conjunto de valores e práticas odiosas, cujas ações têm consequências perturbadoras não apenas para as pessoas alvo de campanhas difamatórias e ameaças, mas para a democracia, pelos efeitos de silenciamento provocado pelo medo, pela fragilização da liberdade de expressão e do debate baseado em evidências.
Mas a força da resistência é enorme também: há feministas e ativistas cada vez mais jovens se mobilizando com criatividade por respostas coletivas, ocupando lugares de poder. Os ressentidos da história serão responsabilizados e esquecidos.
AGIR – Qual tem sido a atuação da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero durante a pandemia? E no pós-pandemia?
Debora – A Anis, a organização que fundei e que hoje é liderada por jovens doutoras, Luciana Brito e Gabriela Rondon, está empregando suas maiores fortalezas – em pesquisa, comunicação, advocacy, litígio estratégico, engajamento comunitário – para fortalecer uma resposta feminista à pandemia. Ou seja, uma resposta que tenha os direitos de meninas e mulheres e políticas de proteção social ao centro.
A Anis atuou, por exemplo, no caso recente do principal serviço de aborto legal do País, que ficou fechado por várias dias por causa da pandemia e só reabriu graças à pressão da sociedade civil, para que não esqueçamos que serviços de saúde sexual e reprodutiva e de enfrentamento à violência são serviços essenciais.
AGIR – A pesquisa da senhora sobre os impactos do vírus zika no País lhe rendeu o prêmio Jabuti de ciências da saúde. O que, nos resultados ao longo dos anos, a senhora percebe que se assemelha e se diferencia do impacto agora da Covid-19?
Debora – Assim como a pandemia do coronavírus, a epidemia do zika escancarou e agravou as desigualdades sociais no País, e a desigualdade de gênero é uma delas. Mas nós nos esquecemos do zika muito rápido. E por quê? Porque afetava principalmente populações mais vulneráveis – jovens, negras e indígenas, mulheres pobres nordestinas. As desigualdades sociais tornaram essas mulheres invisíveis muito antes do zika mudar suas vidas, e a invisibilidade tornou mais fácil para que governos as abandonassem.
Até hoje, mulheres e crianças afetadas pelo zika estão por conta própria, a maioria das mulheres sem ter como trabalhar por serem cuidadoras em tempo integral, às vezes com companheiros que as abandonaram pela dureza da rotina, e lutando para acessar o Benefício de Prestação Continuada ou a pensão vitalícia para crianças com a síndrome congênita do zika em meio ao desmantelamento do sistema de proteção social brasileiro
AGIR – A quarentena aumenta a violência doméstica. Há dados que comprovam isso. O que seria possível fazer para reverter essa realidade?
Debora – Políticas públicas, inclusive as emergenciais, têm que ser pensadas desde uma perspectiva de gênero, atenta a como as desigualdades de poder tornam as mulheres mais vulneráveis. Há hoje deputadas feministas lutando para aprovar projetos de lei que pedem que o poder público providencie, em caso de falta de vaga em abrigos, hospedagem em pousadas e hotéis para mulheres vítimas de violência durante a quarentena, e tem que haver formas adaptadas de atendimento às mulheres, seja por telefone ou meios online.
Estamos lutando também para que serviços de saúde sexual e reprodutiva sejam considerados essenciais. O já aprovado pagamento da renda básica emergencial em dobro para mulheres que são mães solo é também uma medida importante.
AGIR – Na conta @reliquia.rum, a senhora e o artista Ramon Navarro registram memórias de mulheres mortas pelo vírus. Particularmente, teve algum retrato que a comoveu mais?
Debora – Não, todas as histórias são muito comoventes. Contamos uma história por dia, e isso é uma miudeza trágica diante das quase 900 mortes diárias por Covid-19 que têm sido registradas no País nos últimos dias. O que sempre nos toca muito, a mim e ao Ramon, são as famílias em luto que nos escrevem todos os dias. Se emocionam com as histórias e querem contar mais sobre as vidas das mães, irmãs, amigas e companheiras que perderam. Um dos muitos efeitos terríveis de uma pandemia assim avassaladora é a dessensibilização ao luto, ao direito de sentir a perda, a falta. Os relicários são nossa forma de tentar resistir ao processo de desaparecimento de biografias, de pessoas reduzidas a números.
AGIR – A senhora disse que o mundo pós-pandemia de Covid-19 terá valores feministas. Além da descriminalização do aborto que a senhora citou, o que mais esses valores poderão significar, na prática, na vida das mulheres?
Debora – Para mulheres e meninas, lidar com essa crise de saúde pública significa não apenas o risco de ser afetada por uma nova doença, mas também enfrentar outros problemas de saúde decorrentes da exacerbada desigualdade de gênero. Partindo daí, levar a sério os valores feministas de proteção social, interdependência e cuidado coletivo significa, por exemplo, rever a distribuição desigual de trabalho doméstico e de cuidados, com investimento em creches e incentivos à participação igualitária de homens no cuidado das famílias com crianças, idosos, pessoas com deficiência, doentes.
É preciso garantir a inclusão de serviços de saúde sexual e reprodutiva dentre aqueles considerados serviços essenciais e básicos em um cenário de acesso universal à saúde, para que meninas e mulheres não sejam forçadas a enfrentar gestações indesejadas, abortos inseguros, falta de cuidados pré e pós-natais, violência obstétrica. Também é necessário criar sistemas de seguridade social que protejam trabalhadores informais, especialmente em casos de adoecimento e perda de renda; na América Latina e Caribe, 59% dos trabalhadores informais são mulheres. E isso seria, é claro, apenas o começo.
AGIR – O que a senhora acredita que seja um caminho para enfrentar esta pandemia, sem surtar?
Debora – Poderia mencionar duas coisas. A primeira é renovar nosso compromisso com a ciência, com debates públicos responsáveis baseados em evidências. A pandemia nos mostra todos os dias efeitos concretos e trágicos da disseminação de notícias falsas, teorias conspiratórias e curas milagrosas que afastam pessoas dos cuidados básicos de higiene e isolamento social.
A segunda é reconhecer nossos privilégios. Quem pode realmente trabalhar de casa, com cuidados adequados, e seguir à risca o isolamento social sem correr risco de passar fome é uma minoria da população global. Isso tem que nos mobilizar para pensar seriamente o mundo que queremos. Essa minoria não pode viver isolada, e as desigualdade sociais nos afetam a todos.
AGIR – Quais marcas desta guerra sanitária devem ser mais difíceis de esquecer?
Debora – Em primeiro lugar, não acho que estejamos vivendo uma guerra. Guerras são sobre inimigos e armas. Estamos vivendo uma crise humanitária de proporções globais, que nos exige cuidados e proteção social. Na verdade, espero que não esqueçamos o quanto essa crise humanitária nos ensina sobre nossa necessidade compartilhada de cuidado, nossa interdependência. Não é possível cuidar de algumas pessoas, estamos todas conectadas, e o cuidado só funciona se for coletivo.
PERFIL
Antropóloga, natural de Maceió, Debora Diniz é professora da Faculdade de Direito da UNB e pesquisadora do Centro para Estudos Latino Americanos e Caribenhos da universidade americana Brown.
Venceu, em 2017, prêmio Jabuti de ciências da saúde pelo livro “Zika: do Sertão Nordestino à Ameaça Global”. Este ano, recebeu o prêmio Dan David na categoria igualdade de gênero. Vive desde 2018 fora do Brasil devido às ameaças que sofre pela defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
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